27 de fevereiro de 2010

A VIDA NAS RUAS

José de Oliveira Júnior

A VIDA NAS RUAS: UM OLHAR SOBRE O COTIDIANO DOS MENINOS E MENINAS MORADORES DE RUA DA CIDADE DE MACEIÓ-AL.



Caro internauta a partir de agora estarei mais presente no blog, já havia postado algumas poesias e neste momento posto um artigo acadêmico sobre a vida nas ruas, um estudo onde procuro discutir a condição dos meninos e meninas moradores de rua. A vivência com essa população excluída da cidade de Maceió me fez pensar sobre as leis e ações governamentais e não-governamentais. O que temos feito por nossas crianças e jovens? O que queremos para o futuro dos jovnes em situação de vulnerabilidade social e cultural? No artigo procuro discutir estas questões para que possamos refletir sobre nossas práticas enquanto indivíduos dotados de direitos e deveres. A linguagem usada no artigo é acadêmica, se quiserem saber em linhas gerais leiam o resumo abaixo e quando tiver um tmpo a mais clique no continue lendo...
por José de Oliveira Júnior

RESUMO

A partir de um trabalho realizado como Educador Social de Rua na Organização Não-Governamental, Projeto Alternativo de Apoio a Meninos e Meninas de Rua de Maceió - PAAMMRM, Centro Erê, no final do ano de 2003 até o período de junho de 2004, pude realizar algumas observações participantes e escutar algumas histórias de vida dos meninos e meninas que perambulam pelas ruas da cidade. De posse desse material e tendo a curiosidade cientifica para explanar a respeito desse tema é que surge esse artigo. Esse artigo versa sobre a vida desses meninos e meninas que sem ter para onde ir, e o que fazer habitam a rua e fazem dessa sua morada. Porque meninos e meninas vivem nas ruas? O que leva esses indivíduos terem a rua como habitat? De que maneira se comporta com seus “semelhantes”? Pretende-se conhecer esse universo do cotidiano para que possamos refletir sobre a condição humana de indivíduos que tem leis específicas, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente criado no ano 1990, e grupos de “defesas” instituídos, mas não possuem proteção contra a violência que sofrem diariamente nas ruas. A exclusão social causado pelo sistema vigente no atual Estado brasileiro e, mais particularmente no Estado de Alagoas, deixa em condição de marginalidade e miserabilidade crianças, adultos e velhos. Somos violentados a todo tempo e a toda hora. A violência que crianças, jovens e adultos vivenciam nas ruas acontece de diversas formas, ela é simbólica e física.

Palavras-chave: Violência, Cidadania, Cotidiano, Cidade e Sociedade.


1. INTRODUÇÃO

(...) Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios suplicados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os suplicou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos (...) seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós... (?)(Ribeiro: 1998, pág. 120).

Durante alguns anos a população que vive nas ruas da cidade de Maceió vem aumentando significativamente. O aumento dessa população é tão crescente e visível que se torna fundamental investigar essa situação para melhor subsidiar ações de órgãos governamentais e não-governamentais voltadas para mudar esse quadro. No final do ano de 2003 passei a trabalhar como Educador Social de Rua no Projeto Alternativo de Apoio a Meninos e Meninas de Rua – PAAMMRM, Centro Erê, permanecendo nessa instituição até junho de 2004. O intuito dessa observação foi entender o porquê da vida nas ruas e o que leva a organização desses indivíduos em grupos.

Decorridos alguns meses de observação e participação dentro dessa instituição passei a conviver com essa realidade cotidiana vivida pelos meninos e meninas que freqüentam a Praça dos Martírios e a Feira do Rato. Desde então sentimos a necessidade de descrever, compreender e analisar a vida desses indivíduos. Essas pessoas transformam a rua em casa. A cada ano que passa muitos indivíduos buscam a rua para sobreviver.

Por não se conhecer quem são, quantos são, como vivem, etc., pretende-se descrever os locais onde esses indivíduos perambulam e habitam para que se possa ver mais de perto e analisar essa realidade. No Estado de Alagoas não existem dados suficientes registrados a respeito dessa população e sobre a realidade que vivenciam. De onde vêm, porquê vieram, porquê permanecem. Pesquisamos dados existentes junto aos órgãos municipais, estaduais e das organizações não-governamentais para avaliar como essa problemática vem sendo monitorada e considerada através desses órgãos.

Procurar-se-á compreender o universo de vida e cotidianidade dos meninos e meninas que moram nas ruas de Maceió-AL, tomando como foco de observação a Praça dos Martírios e a Feira do Rato. Buscaremos uma compreensão do cotidiano destes indivíduos que constroem a marginalidade da história desse Estado. Quando falamos sobre marginalidade queremos nos referir aqueles indivíduos que estão à margem da sociedade e da cultura e que são excluídos do processo de construção social e cultural. Daquele que “vive fora do âmbito da sociedade ou da lei, como vagabundo, mendigo ou delinqüente” (Ferreira, 1986: pág. 1092). Um indivíduo marginal. A exclusão social provoca uma acentuada desorganização no modus operandi de uma sociedade causando, com isso, uma forte desestruturação e desorganização na vida dos indivíduos. Pretende-se ir à busca dos acontecimentos e dos significados que levaram esses indivíduos ter a rua como casa.

2. ESTAR NAS RUAS

Inquietando-se com essa realidade de vida cotidiana e tendo conhecido e conversado com vários transeuntes habitantes da rua (meninos e meninas), surgiu à curiosidade científica de construir a dinâmica interna desse grupo mostrando como vivem, dormem, comem, conseguem dinheiro para uso de drogas, exercem suas regras, normas, convenções, liderança, organização, etc.
Na cidade de Maceió-AL o índice de meninos e meninas que moram nas ruas vem aumentando consideravelmente. Esses indivíduos buscam as ruas como alternativa de sobrevivência. Na Praça dos Martírios e na Feira do Rato no coração da cidade esses indivíduos se organizam e criam códigos grupais baseados em hierarquias sociais.

Os meninos (as) que elegeram a Praça como sua morada (casa) vive em grupo e compartilham seus sofrimentos. A maioria desses indivíduos durante o dia dorme, perambulam pelas ruas em busca de dinheiro e comida. Os comportamentos são os mais dispares possível. Riem e choram com muita “facilidade”. Compartilham entre si os amores e desamores. São indivíduos independentes e seguem o que o instinto e a necessidade ordenam.

O uso da cola é o fator predominante entre esses indivíduos e, além da cola utilizam maconha (canabis sativa), pedra (comprimidos antidepressivos), crak, álcool. Não existe distinção dos sexos na utilização das drogas, todos usam e compartilham o uso.

Como acontece em todo grupo um líder é sempre eleito. E se tratando da vida nas ruas a coisa não poderia ser diferente. O líder é sempre o mais velho do grupo. Porém, a disputa pela liderança acontece de tempos em tempos. O líder é respeitado, mas o seu posto é sempre cobiçado.

Os meninos estão sempre disputando entre si para impor respeito e autonomia. Vão em busca de comida, dinheiro, drogas. Tem uma vida sexual bastante ativa e procuram manter o poder através do sexo.

As meninas têm um papel “secundário” nessa morada. Perambulam em busca de comida, dinheiro e drogas. Sexualmente são muito ativas e relaciona-se com vários parceiros ou elegem um companheiro. Foi observado que muitas meninas tem corte por todo o corpo, quando perguntadas sobre esse fato disseram-nos que se cortavam quando estavam muito triste ou se sentindo angustiada com alguma coisa ou algo.

A condição desses meninos (as) nas ruas são a pior possível. A maioria fugiu da violência causada por seus pais. Estão nas ruas por falta de apoio e proteção. São seres incompreendidos que sofreram (sofrem) pelo descaso e omissão da Família, do Estado e das Entidades que deveriam cuidar de seu bem estar. A maioria desses indivíduos sente o desejo e a vontade de sair das ruas, porém esbarram na falta de apoio e proteção.

Os transeuntes da praça são pessoas de todos os tipos e credos. Alguns tentam ajudar os meninos (as), outros vão à busca de drogas, sexo e diversão. Na praça já chegamos a fazer uma contagem de 29 pessoas. Entre esses vinte e nove estão crianças de 0 a 05 anos de idade, adolescentes da mais variada faixa etária e adultos.

A vida na feira é o “oposto” da praça. Na feira a situação é gritante. Também vivem em grupo, porém se dividem em subgrupos. Perambulam pelas ruas da cidade em busca de comida, dinheiro, sexo e drogas. Na feira as coisas acontecem e os indivíduos fazem acontecer a todo tempo e hora. Como na praça, na feira também existe um líder ou vários lideres.

Utilizam todo tipo de drogas, mas a dominante é a cola. Certa vez foram observados na redondeza alguns pés de maconha (canabis sativa). Não soubemos se era plantado pelos meninos (as) ou, se algum barraqueiro tinha plantado.

Na feira existe um Senhor chamado Seu Biu, (José Benedito Moura) ex-militar que tem uma barraca onde vende TV. Esse senhor “ajuda” e dá guarita aos meninos (as). Empresta dinheiro, guarda as roupas, permite que durmam na barraca etc. Resolve as broncas que ocorre com os barraqueiros e polícia. É considerado como “pai” para esses meninos (as).

Pela tarde o clima da feira é bem pesado. O uso de drogas é bem alto e o roubo acontece freqüentemente. O roubo feito pelos meninos (as) é passado para transeuntes bem aparentados que exploram a miséria alheia.

Os meninos da feira são muito mais aliciados para o roubo, venda de drogas etc. Estão sempre em brigas e disputas. Violentam-se uns aos outros.

As meninas vendem seus corpos em busca de ninharias. Utilizam todo tipo de drogas e traficam para si e seus companheiros. São constantemente violentadas.
A condição humana na feira entre esses meninos (as) é deplorável. A violência ocorre constantemente.

Na feira já chegamos a contar 25 pessoas. Entre essas pessoas encontram-se crianças de 08 a 12 anos de idade, além de adolescentes e adultos.

Diferente da Praça, na Feira esses indivíduos ficam mais dispersos e são mais agressivos, além de praticarem mais atos ilícitos como, por exemplo, roubo, tráfico, prostituição, etc. A idade também é semelhante aos da Praça. Na Feira a realidade é mais cruel. Aqui eles perdem a inocência mais cedo e se tornam àquilo que a sociedade quer que eles se tornem: marginal. Na Feira não há lugar para diversão, mas sim trabalho. A maioria desses indivíduos vem de uma família miserável, desestruturada e sem perspectivas de futuro em suas vidas.

Nos dias atuais, os meninos e meninas que habitavam a Praça foram expulsos do lugar após a construção do novo prédio do palácio do governo e da reestruturação da praça. Onde foram parar esses meninos e meninas?

Por isso, segundo Goffman (1975: pág. 11) “(...) A informação a respeito do indivíduo serve para definir a situação, tornando os outros capazes de conhecer antecipadamente o que ele esperará deles e o que dele podem esperar”. E porque, “(...) somente indivíduos de determinado tipo são provavelmente encontrados em um dado cenário social” (op.cit., pág. 11).

3. O QUE DIZ A LEI

Através da observação participante, o cotidiano desses indivíduos (meninos e meninas) de rua foram registrados para que possamos conhecer mais de perto, através das próprias percepções e experiências deles mesmos quem são, de onde vêm, porquê estão nesta situação, porquê permanecem nessa condição de marginalidade. Porquê meninos e meninas que possuem legislação para garantir seus direitos são encontrados nesse cenário social?

A questão da criança e do adolescente encontra na Constituição Federal de 1988 um bom respaldo sobre o cuidado e a proteção que devemos manter com nossos menores em situação de vulnerabilidade social. A obrigatoriedade em proteger os direitos de crianças e adolescentes é enunciada freqüentemente, destacando-se o artigo 227, que diz o seguinte: “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

O Estado manifesta seu compromisso como promotor dos direitos infanto-juvenil, através de programas e serviços de assistência integral à criança e ao adolescente, com a participação da sociedade civil. Porém, esta assistência deveria ser para todos que dela necessitam, não para aqueles que o Estado consegue capturar.

No ano de 1985 é fundada uma organização não-governamental, popular, autônoma, composta de voluntários, que através da participação das próprias crianças e adolescentes, buscam a conquista e a defesa de seus direitos de cidadania, é o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua.

O MNMMR não tem um lugar de nascimento específico no Brasil, ou tem um único fundador, ele é fruto de determinações históricas e articulação de grupos de base de educadores de rua ou engajados em diversos programas de atendimento; construído por diversas pessoas, independente de credo e crenças, técnicos de instituições oficiais e agentes sociais comunitários que desenvolviam no início dos anos 80 as experiências alternativas de atendimento a meninos e meninas em situação de rua.

Nos fins dos anos 70, a situação da infância e da adolescência pobres, a chamada “questão do menor” ou do “menino de rua”, já havia se tornado um problema social grave e complexo. O processo de modernização, industrialização e o modelo de desenvolvimento adotado pelo sistema capitalista geraram um crescimento acelerado das cidades, formando as grandes metrópoles e a concentração de renda, acentuando os níveis de pobreza.

O MNMMR está presente em 25 dos 27 Estados. Possui cerca de 80 comissões locais cadastradas, congregando cerca de 800 educadores filiados. As comissões locais utilizam, normalmente, espaços cedidos por outras organizações da sociedade civil ou residências dos próprios ativistas e educadores.

No ano de 1990 é criada a lei nº 8.069 que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente sancionado pelo Presidente da República. Nessa legislação é determinado no Título I, Art. 3º, que: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral...” (1997, pág 15). Mais adiante, nesse mesmo estatuto, no Título II, Capítulo I Art. 7º determina que: “(...) A criança e o adolescente têm direito a proteção a vida e à saúde...” (Idem, pág. 17). E ainda no Capítulo III, Seção I, Art. 19º esta escrito que “(...) toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes” (Idem, pág. 20). A lei existe para garantir direito a esses indivíduos, no entanto, o fato de estarem nessa situação na qual vivem, na rua, sem proteções familiares, sanitárias e educacionais reflete as próprias contradições do contexto social a que estão inseridos. Essas crianças e adolescentes vivem em situações de risco e sem perspectivas futuras em termos de cidadania.

De acordo com Heller (1992: pág. 02) “(...) A sociedade não dispõe de nenhuma substância além do homem, pois os homens são os portadores da objetividade social, cabendo-lhes exclusivamente a construção e transmissão de cada estrutura social”. Dentro da história construída pelos seres humanos, a história de vida de um grupo ou de uma sociedade nos serve como explicitação da essência humana. Os meninos e meninas moradores de rua constroem uma estrutura de vida viável, nossos questionamentos pontuam acerca de como concretizam este fato.

A existência desse grupo e seu modo ou, estilo de vida, bem como as problemáticas que os motivaram para optarem por situarem-se à margem da sociedade. Será investigado os fatos concretos expressos no cotidiano de vida através do comportamento e experiências que vivenciam no cotidiano. “(...) A vida cotidiana (...) (é) como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente” (Berger: 1985, pág. 35). Por exemplo, à nível de organização política desses grupos, já foi registrado em pesquisa de campo preliminar a existência de um líder, no caso da Praça, e no caso da Feira do Rato, mais de um líder atua entre os adolescentes e crianças daquela localidade.

4. REFERENCIAL TEÓRICO:

Na vida cotidiana, o mundo é tomado não só como realidade concreta pelos membros que estão na sociedade, mas a ação subjetiva é dotada de um sentido que marca para sempre a vida (Berger, 1985; Goffman, 1988). O mundo se origina no pensamento e na ação dos indivíduos e por eles são vivenciado e considerado real.

Sendo assim, as identidades dos indivíduos passam a ter uma qualidade de identificação compartilhada no grupo social ao qual escolheram fazer parte para vivenciar suas emoções e realizar práticas cotidianas. No caso dos meninos e meninas de rua, percebe-se que os caracteres próprios e exclusivos dessas pessoas são estigmatizados, fazendo com que esses indivíduos estejam na condição de inaptos para a aceitação social plena.

De acordo com Goffman (1998, pág. 11),
Os gregos (...) criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. (...) Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal.

Assim, a perspectiva adotada parte da concepção que a condição de estigmatizados dos meninos e meninas moradores de rua se relaciona ao status moral que ocupam enquanto excluídos e marginalizados na nossa sociedade.

Esse estudo investiga um significativo fenômeno urbano contemporâneo através de uma perspectiva aparentemente simples de fatos e dados singulares que fazem parte da vida cotidiana de indivíduos, valorizando, com isso, tanto aspectos qualitativos dessa realidade, através das experiências e percepções que eles possuem, bem como dados quantitativos dessa problemática, buscando mostrar a complexidade da vida humana e seus significados para a vida social e cultural.

Para Da Matta (1991, pág. 17):
... ‘casa’ e ‘rua’ são categorias sociológicas para os brasileiros, (...) entre nós, estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas mensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e insípidas.

Nossa herança mais terrível é a de levarmos sempre conosco a marca de um torturador que foi impressa em nossa alma e que esta sempre pronta para explodir em uma certa brutalidade dentro da sociedade, contra os indivíduos. Qualquer Ser desprovido de si passa a ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição desumana.
Velho (1987: pág. 17) coloca que,

(...) A Revolução Industrial, propriamente dita, criou um tipo de sociedade cuja complexidade está fundamentalmente ligada a uma acentuada divisão social do trabalho (hierárquica, grifo meu), a um espantoso aumento da produção e do consumo, à articulação de um mercado mundial e a um rápido e violento processo de crescimento urbano (Hobsbawn, 1975). Quando estiver falando em sociedade complexa industrial moderna estou me referindo ao tipo de sociedade surgida desse processo (...).

As cidades contemporâneas são a expressão desse modo de vida incorporados pelos mais diversos grupos e indivíduos. A vida nas cidades, com sua heterogeneidade produz um cenário social e cultural com uma gama de variedade de experiências, costumes e estilos de vida. Dessa forma as ciências sociais passaram a desenvolver conceitos e instrumentos de investigação da realidade que nos fornece a possibilidade de produzir conhecimento sobre experiências sócio-históricas específicas.

Enquanto em determinadas culturas ou sub-culturas o indivíduo se torna foco de uma ideologia central, em outras acontece o contrário. Essa função se torna uma peculiaridade econômica, política e simbólica. A noção de que os indivíduos escolhem ou podem escolher é a base para que se possa pensar no ser humano - menino e menina de rua - como uma idéia de categoria do todo e hierárquica. Ao mesmo tempo produto e reflexo de um contexto sócio-histórico contemporâneo.

E, sendo assim, quando se fala em hierarquia pode-se perceber que No estudo sociológico das pessoas estigmatizadas, o interesse esta geralmente voltado para o tipo de vida coletiva, quando esta existe, que levam aqueles que pertencem a uma categoria particular (Goffman: 1988, pág. 30). É nessa perspectiva que esse estudo pretende focalizar tanto a sociabilidade, a vida social e coletiva, que esses meninos e meninas de rua vivenciam para ter uma compreensão do que e como é desenvolvida e construída a categoria particular que eles pertencem dentro do contexto urbano.
Isto, porque,

(...) Muitos fatos decisivos estão além do tempo e do lugar da interação, ou dissimulados nela. (...) o individuo terá que agir de tal modo que, com ou sem intenção, expresse a si mesmo, e os outros por sua vez terão de ser de algum modo impressionado por ele (Goffman: 1988, pág. 12).

As proposições de Goffman (1988, pág. 21) dizem que (...) A sociedade está organizada tendo por base o principio de que qualquer indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de esperar que os outros o valorizem. Isto, porque, (...) A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho e físico (Heller: 1992, pág. 17)

A vida em sua cotidianidade é a vida do ser humano como um todo. O ser humano ao se inserir na vida cotidiana leva consigo todos os aspectos inerentes a sua individualidade e de sua sociabilidade. O indivíduo cotidiano é fruidor, ativo e receptivo, porém não têm tempo nem possibilidade de se perceber como parte e todo de uma sociedade. Pois, (...) a significação da vida cotidiana, tal como seu conteúdo, não é apenas heterogênea, mas igualmente hierárquica (Idem, pág. 18). Assim, a preocupação teórica dessa pesquisa também perpassa a questão da compreensão da hierarquia enquanto status estigmatizante de marginalidade que meninos e meninas de rua estão inseridos num contexto urbano, bem como focaliza relações hierárquicas dentro das próprias relações sociais que eles interagem entre si.
De acordo com Heller (1992):

(...) O homem nasce já inserido em sua cotidianidade. O amadurecimento do homem significa, em qualquer sociedade, que o individuo adquire todas as habilidades imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada social) em questão. É adulto quem é capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade (pág. 18).

No caso desse universo das ruas a capacidade e habilidade que os indivíduos vivenciam a sua cotidianidade pertence a um estilo de vida que não necessariamente esta na fase adulta de suas vidas. Há uma sociabilidade que deve ser investigada para exatamente se compreender como essa cotidianidade é construída e vivenciada.

O mundo é formado por múltiplas realidades criadas pela cultura e pelo individuo. E, sendo assim, (...) Entre as múltiplas realidades há uma que se apresenta como sendo a realidade por excelência. É a realidade da vida cotidiana (Berger: 1985, pág. 38).A realidade cotidiana da rua é vivenciada por uma determinada categoria de indivíduos estigmatizados.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Existem diversos fatores que podem levar uma criança, adolescente ou adulto a viver e morar nas ruas. Desestruturação familiar, devido à falta de trabalho, moradia, e falta de condições de alimentação e saúde. Descaso do Estado e falta de políticas públicas voltada para população em situação de vulnerabilidade social. Desestruturação dos movimentos reinvidicatórios. Dentre diversos outros fatores.

O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua passa por um grande desafio na atualidade: como contribuir para a melhoria e bem-estar de crianças e adolescentes em situação de rua?

Quando surge o MNMMR a luta era clara e efetiva. Porém, quando esse movimento se estrutura e consegue se expandir por todo o país mobilizando e sensibilizando, começa o verdadeiro desafio. Ao longo dos anos muito foi conquistado e muito desperdiçado. Em Maceió o MAMMR (Movimento de Apoio a Meninos e Meninas de Rua) após algumas crises internas se dissolve e a luta para ajudar esses meninos e meninas fica nas mãos de organizações de caráter duvidoso que precisam fazer mais e cobrar mais. De acordo com algumas meninas tem dono de organização não-governamental no município que abusam sexualmente de seus corpos, o que fazer? O que tem sido feito?

A mortalidade de crianças teve índices inaceitáveis na década de 80; a educação não era acessível a todos, como ainda não é, e muitos ficavam doentes por problemas ligados à falta de saneamento básico. As ruas estavam repletas de crianças e adolescentes que aí moravam ou trabalhavam e os jornais reproduziam inúmeras notícias da violência nas Febens de todo o país.
Iniciou-se uma mobilização social que chegou fortalecida ao Congresso Nacional no momento em que os deputados e senadores escreviam uma nova constituição federal. A constituição aprovada em 1988 incluiu um artigo, o 227, que definia a criança como prioridade nacional. Os direitos básicos da criança e do adolescente tinham que ser regulamentados numa legislação totalmente diferente do antigo Código de menores.

Alguns anos antes do Estatuto da Criança e do Adolescente ser escrito, os países ligados às Organizações das Nações Unidas (ONU) se juntaram para escrever as “Regras de Beijing”. Nesse Pacto, vários países do mundo concordaram que as crianças e adolescentes que se envolvessem em crimes deveriam ter um tratamento judicial diferenciado dos adultos. O ECA incluiu as idéias principais desse pacto na redação dos seus artigos, garantindo o direito do jovem ser julgado por seu crime, tendo, um advogado para defendê-lo. Caso fosse provada a infração, o adolescente receberia uma medida sócio-educativa, ou seja, uma punição. A gravidade do ato infracional é que determina se essa medida é mais dura ou mais leve cabendo ao juiz da infância e da adolescência a decisão final.

Nessa nova concepção de cidadania a sociedade é vista como um elemento participante no processo de luta pela garantia efetiva dos direitos humanos. Sendo assim, essa participação se dá a partir da atuação individual de cada cidadão, mas principalmente através de instituições especialmente desenhadas para servirem como ligação entre sociedade e Estado, no trabalho de transformação do que está na lei em realidade.

Hoje os meninos e meninas de rua não têm mais a Praça dos Martírios como morada, pois foram expulso dessa, devido à nova urbanização do local, porém a Feira do Rato continua cada dia mais habitado por esses indivíduos. Para onde foram os da Praça dos Martírios? Agora estão em todos os lugares da cidade, alguns adotaram a Praça Deodoro e a Praça da Faculdade como sendo seu mais novo habitat, outros perambulam pelas ruas em busca de comida, dinheiro, drogas, “liberdade”.

A partir do que foi observado, ouvido e vivido podemos perceber que a vida nas ruas por si só já é uma violência sem precedentes. Os meninos (as) que elegeram as ruas como sua casa estão nessa condição devido ao descaso e omissão, bem como, uma falta de organização sócio-cultural-familiar.


6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1985.
DA MATTA, Roberto. A casa e a rua. – 4ª ed. – Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S. A., 1991.
DESLANDES, Suely et alli. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
Estatuto da Criança e do Adolescente. Justiça da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro. Universidade Salgado de Oliveira. Departamento de Ciências Jurídicas, 1997.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. –14ª ed. – Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira S/A, 1986.
GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1975.
GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada. – 4ª ed. – Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. – 4ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura. Notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. – 3ª ed. – Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

6.1. BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

ALMEIDA, Luiz Sávio de. A História Escrita no Chão. Maceió: EDUFAL, 1997.
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
CARVALHO, Cícero Péricles de. Formação Histórica de Alagoas. Maceió – Alagoas: Ed. Grafitex, 1980.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. – 8 a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: PAZ e TERRA, 1983.
CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. – 5ª ed. – São Paulo: Cortez, 2001.
CARDOSO, Ruth C. L. et alli. A Aventura Antropológica. Teoria e pesquisa. Rio de Janeiro, 1986.

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